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VAGALUMES

          Esse trabalho é uma  instalação cinética de um conjunto de vaga-lumes eletromecânicos.  Constrói a partir dos coreografismos lumínico-cinético um espaço onde os pequenos brilhos intermitentes convidam a atravessar algumas camadas sensórios-reflexivas, dentre as quais ao menos duas, interconectadas, tem acento evidenciado:1. o colapso eco-social que tem como uma de suas ínfimas consequências o desaparecimento desses animais; 2. o aspecto conceitual relativo à formação de coletivos potencializados e potenciacializantes pela/da diferença, tangenciando noções como resistência, sobrevivência, socio-biocontrole, manutenção e ruptura.

 

   Interessa aqui, que tais questões sejam acessadas (ou não) pela experiência imersiva do corpo no espaço, por meio mais bem das lembranças de encontros que frequentemente eram atravessados de sensações de maravilhamento, suspense e surpresa, quanto à errância luminosa dos animais. Nesse sentido, o trabalho se afina a uma perspectiva de imbricação entre os conceitos que o sustentam e a experiência corporal do espectador, por apostar num fazer artístico que possa estabelecer com o público uma obra com múltiplas camadas de acesso, disponível ao diferentes modos aEstésicos e reflexivos de diálogo.

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        Como parte do processo de criação, venho estudando a viabilidade de execução dos eletro-mecanismos, compreendendo estudos de design final, design eletrônico e design mecânico.

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       Meu desejo é, mediante essa perspectiva polissêmica e multifacetada de um trabalho artístico, compartilhar disponibilizar "reflexões"sobre o radical desequilíbrio biofísico do planeta vem sendo expressado por vários ativistas, cientistas e sabedorias indígenas, apresentando a urgência de ações estruturais em dimensão global, como premissa de manutenção das condições da vida humana na Terra. Isabelle Stengers (cientista e filósofa), lembra que a degradação planetária pós revolução industrial fez desaparecer uma vasta gama de espécies animais e vegetais, mas que, apesar das perdas, o que está em questão não é a morte absoluta do ecossistema terrestre, que ainda em suas piores condições de degradação, garante sua continuidade. Ela aponta que a questão, portanto, é sobre a manutenção das condições para existência da espécie humana. Ademais, a investigadora dos impactos sociais das condições climáticas, diz que esse processo de extinção da espécie humana, é uma possibilidade que se efetivada, será inevitavelmente precedida de condições sociais desastrosas, instaurando ecofacismo (Carlos Taibo), num apartheid climático, que mantém as condições de vida de um grupo ainda menor que os privilegiados do atual contexto, deixando as demais pessoas a mercê de graves condições climáticas que ressonam em situações de escassez alimentar, enfermidades e obviamente, óbitos em dimensões de genocídio.

               A instalação artística aqui proposta, ao apresentar estruturas mecatrônicas que remetem aos vaga-lumes, propõe uma aproximação a essas questões ecológicas da maneira própria à linguagem artística, ou seja, de uma maneira poética, emergida de sua instância compositiva. Diferente, portanto, da produção de um discurso comunicacional, a arte estabelece uma relação mais lacônica e polissêmica na experiência estética, convocando, através da espacialização desses dispositivos bioreferênciados, à relação em diferentes níveis do tema, através da questão específica do desaparecimento dos vaga-lumes, aqueles bichos vistos na infância - ou nunca vistos nas infâncias recentes - e que desapareceram sem que nos déssemos conta.

          O desaparecimento desses organismos bioluminescentes foram tomados como categoria poético-política no pensamento do cineasta italiano comunista Pier Paolo Pasolini, no seu “O Artigo dos Vaga-lumes”, associando o fator ecológico do desaparecimento com o processo que ele chamou de “genocídio cultural”. No italiano, vaga-lume é lucciole. E seu composto biolumenescente, luciferina, tem raiz no latim lux (luz) e fero (carregar) “portador de luz”: os vaga-lumes são pequenos dispositivos biológicos produtores/portadores de luz.

          Pasolini, que viveu o fascismo italiano, denunciava o processo de controle dos corpos a partir da infiltração cultural pelas “grandes luzes” que ofuscavam e inviabilizavam a existências das pequenas luzes que brilhavam errantes enquanto produção de modos de vida heterogêneos. Desesperava a ele esse novo dispositivo de controle num processo de homogeneizava cultural: “O “verdadeiro fascismo”, diz ele, [em 1974] é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as lingua­gens, os gestos, os corpos do povo. É aquele que “conduz, sem carrascos nem execuções em massa, à supressão de grandes porções da própria sociedade”, e é por isso que é preciso chamar de genocídio “essa assimilação (total) ao modo e à qualidade de vida da burguesia”.. 

             Pasolini parecia “vaga-luminizar”, o que seriam também as formulações do filósofo francês Michel Foucault, dando a ver os processos pelos quais os dispositivos de controle social passam de expostas e cruéis mutilações físicas - em processos de punição -, a dinâmicas muito mais invisíveis, - em processos de formação -, em instâncias sociais diversas (família, escola, meios de comunicação, etc), tornando o próprio indivíduo, ele mesmo produtor do seu socio-biocontrole, este, referenciado numa restrita gama dos modos de produzir vida - gesto, corpo, relações, valores, pensamento- afinada às dinâmicas de manutenção de privilégios de reduzido grupo. Essa restrita gama de referências é zona de disputa política de existências, num processo permanente de tensionamento entre uma pretensa hegemonia normativa e a abertura aos direitos de modos de existências diversas em suas condições potenciadas. 

           Essa questão política do corpo e homogeneização cultural, toca diretamente em um dos temas centrais da atualidade, o advento do contexto pandêmico do Covid-19, no qual ocorre uma grave redução da experiência corpórea sensorial, em detrimento de uma experiência pautada em processos hiper-simbolizados em contexto hipervirtualizado. Essa condição pandêmica acirrou os processos de virtualização descorporeificada,  estabelecendo uma espécie de “treinamento” para a redução do corpo nos processos de vida.  Esse contexto é intensamente mais susceptível ao desaparecimento das diferenças, uma vez que, para início de reflexão, já os ambientes virtuais possuem eles mesmos, parâmetros reguladores dos modos de relacionar-se.  Em seguida, mencionar que as experiências sensoriais são produtoras de amplo espectro de alternativa de modos de conhecer e interagir com o mundo e que virtualização dissociada dessas dinâmicas materiais de relação com o mundo, desencadeiam processo intensificação do desaparecimento das diferenças, produzindo uma pequena quantidade de enormes grupos identitários. Ademais, uma coletividade sem corpo é também produtora de descompassos entre as sensações individuais e coletivas com a perda de importantes parâmetros subjetivos, fundamentais para o engendramento de subjetividades capazes de manter equilíbrio individual e perspectivas de cuidados coletivos.

       São, portanto, essas questões - eco-socio-políticas - que inquietam e fomentam esse trabalho. Todavia, o desejo de instalar os vaga-lumes no espaço, não pretende ser uma narrativa eloqüente desses aspectos. Pretende, antes e mais, poder tocar as pessoas através de suas memórias que, está muito associada ao momento da vida do indivíduo em que eram mais frequentes estados de contemplação e curiosidade. Momento em que o corpo era centro dos processos de interação com o mundo e elaboração de saberes. O que se pretende é um acesso ao espectador, primeiramente sensorial, no corpo, na lembrança dos tempos do encantamento. E reserva ao espectador de sensibilidade reflexiva, a opção por acessar essa camada da obra, nesses conceitos de ecologia, corpo e sociedade, sem no entanto, prescindir de uma experiência no contexto imanente do espaço. Porque acredito que é preciso corpo em experiência, como base da construção simbólica. E é preciso desarmar-se um pouco para permitir alguma novas sensações e reflexões. Deixa-se errante.

Ser luz que vaga. Vagar. Lume.

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cadernos de criação

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etapas seguintes

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miniaturizar

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